Fazer das fraquezas forças ou como a Somália se tornou um exemplo mundial nas transacções móveis

Para quem não saiba, o mercado de transferências monetárias da Somália é um dos mais desenvolvidos... no mundo. Caracterizado por uma grande diáspora que envia milhares de milhões de dólares para casa em remessas anuais e uma população local que prefere o dinheiro móvel ao dinheiro em numerário, este é um país que é, sem dúvida, um caso de estudo a este nível.

Os últimos dados do Banco Mundial, datados de 2017, sugeriam já algo que, à época, não era habitual em África: 73% da população com mais de 16 anos de idade utilizava já serviços móveis de transferência de dinheiro, fazendo da Somália um dos mercados mais dinâmicos em África e em todo o mundo.

Apesar de terem sido introduzidaso há apenas uma década, mais de dois terços de todos os pagamentos na Somália dependem já de plataformas de dinheiro móvel.

Embora a Hormuud, o principal fornecedor de dinheiro móvel da Somália, só tenha recebido a certificação GSMA Mobile Money Certification (um padrão global de excelência em telecomunicações) em Março passado, os milhões de somaális já tinham feito, há muito, a sua escolha.

Os principais factores por detrás da inovação do país em transferências de dinheiro são fáceis de identificar: um ambiente operacional difícil, um sistema bancário fraco e uma profunda desconfiança em relação ao Ggoverno e à moeda local.

Disrupção deu lugar àda inovação

As inovações têm, a este nível, um papel preponderante, e vão desde a adopção precoce do sistema Hawala, por onde são movimentadas centenas de milhões de dólares anualmente  (definido como um método tradicional e informal que funciona paralelamente a qualquer outro sistema bancário ou de envio de valores e que se baseia na confiança compartilhada pelos intermediários, conhecidos como halawadars),  até ao aumento global das empresas de transferência de dinheiro de origem somali, incluindo a World Remit e a Dahabshill.

"Qualquer pessoa que tenha um telemóvel tem serviços de dinheiro móvel", diz Abdullahi Rage, um analista de investigação baseado em Mogadíscio no Centro Africano para o Progresso Estratégico, um grupo de reflexão dos EUA, citado pela Quartz.

"O problema na Somália é que temos falta de dados e é difícil obter números exactos. Mas eu diria que mais de 9nove em cada 10 pessoas utilizam dinheiro móvel na Somália", assegura.

A Somália tem sido durante muito tempo um mercado desafiante com profundas divisões no Ggoverno que muitas vezes se traduzem em conflitos armados (como ainda agora acontece) e partes do país sob o controlo do grupo terrorista al-Shabaab. Mas estes problemas criaram o caldo de realidade ideal para o surgimento de soluções inovadoras, especialmente no que diz respeito à tecnologia financeira.

"É a cultura da nossa comunidade, somos tomadores de risco. Devido aos desafios, tivemos de explorar novas ideias", dizia recentemente Ahmed Mohamed Yuusuf, CEO e presidente da Hormuud, uma das maiores televisões da Somália, com 4,5 milhões de assinantes.

A primeira inovação foi a adopção precoce do sistema de transferência de dinheiro Hawala, que teve origem na Índia do século VIII e se estendeu ao Corno de África e ao Médio Oriente. O serviço permite aos utilizadores enviar e receber dinheiro em diferentes países através de uma rede informal de correctores, sem quaisquer fundos a atravessar fronteiras.

Este método de transferência de dinheiro já era popular na Somália antes do surgimento do dinheiro móvel e assim continua até aos dias de hoje, com a maioria dos agentes a mudarem-se para a indústria formal das telecomunicações.

Yuusuf diz que até 45% dos agentes Hawala na Somália, que na sua maioria processam pagamentos dos EUA e do Reino Unido, utilizam o dinheiro móvel do Hormuud EVC Plus para fazer negócios.

Um mercado como em nenhum outro lugar

A este nível, a Somália tem um mercado monetário móvel extremamente competitivo com muitos players de pequeno porte em vez de algumas grandes empresas como outros mercados em África.

Em comparação com mercados vizinhos como o Quénia, que é o lar da Safaricom M-Pesa, um dos serviços de dinheiro móvel mais conhecidos de África, ou até Moçambique, o dinheiro é transferido em dólares e a maioria das empresas de telecomunicações não cobra qualquer taxa pelas transferências.

Quando a Hormuud lançou o EVC Plus em 2011, Yusuuf diz que fizeram um serviço gratuito para encorajar os somalis a adoptar a tecnologia financeira. E em vez de usar o EVC Plus para gerar receitas, o serviço foi usado para embarcar clientes para aderirem a outros serviços, tais como dados e voz, e apenas é pago na sua versão corporativa e chega a ser frequentemente utilizado por organizações humanitárias para ajudar a prestar ajuda à Somália.

Mais de 200 milhões de dólares foram enviados para a Somália nos últimos meses por vida desta plataforma.

De facto, a Somália tem um sector dinâmico de remessas com mais de 2 milhões de cidadãos a viver fora deste país da África Oriental. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento estima que 1,6 mil milhões de dólares são enviados anualmente para a Somália - quase um terço do PIB do país, que era de 5,42 mil milhões de dólares em 2021.

Uma das empresas mais conhecidas a emergir da Somália é a World Remit, uma empresa de transferência de dinheiro que foi fundada em 2009 por um empresário somalilandês que se sentiu frustrado pela falta de opções de transferências de dinheiro, quando chegou ao Reino Unido como refugiado.

A empresa também transfere dinheiro entre contas móveis em dólares, uma vez que o xelim somali é muito instável e o FMI diz que cerca de 98% da moeda local em circulação é falsa. A falta de confiança no dinheiro físico é, de resto, uma outra forte razão para o mega-sucesso do dinheiro móvel na Somália, levando a uma situação em que este substituiu quase completamente a moeda oficial em vastas regiões do país.

Pesquisas mostram que a Somália processa cerca de 155 milhões de transacções por mês numa população de apenas cerca de 17 milhões de pessoas. E a maioria delas mantém o seu dinheiro numa carteira digital, em oposição a um banco físico.

Supervisão é o desafio

Um dos principais problemas no mercado doméstico, porém, é a falta de regulamentação para o dinheiro móvel. Instituições frágeis e o risco político contínuo atrasaram uma legislação robusta que pode regular a indústria do dinheiro móvel para garantir que esta beneficia os consumidores e o país.

Um bom exemplo é o Hormuud, que recebeu a primeira certificação GSMA Mobile Money da Somália em Março. A certificação da organização líder mundial da indústria é um marco para o sector das telecomunicações do país e coloca a plataforma entre os principais fornecedores de dinheiro móvel em África em termos de segurança e protecção.

O CEO da empresa explica, numa entrevista recentemente publicada na Quartz, que a empresa tinha de cumprir 350 critérios diferentes e que conhecer os requisitos dos seus clientes (KYC) era o mais difícil de cumprir. "Não temos uma rede nacional de bilhetes de identificação em vigor e, portanto, ter os dados dos clientes foi um pequeno grande desafio", diz ele.

Depois, havia que garantir que as normas rigorosas exigidas pela GSMA não desencorajassem a inclusão financeira dos somalis que não têm acesso à identificação formal. A solução era baixar para 300 dólares o montante máximo que os utilizadores não identificados podiam reter numa carteira digital, o que reduzia a probabilidade de esta ser utilizada para financiamento ilícito.

Apesar da falta de um organismo regulador forte, Yuusuf diz que tem havido algumas melhorias recentes. O banco central da Somália concedeu ao Hormuud a primeira licença de dinheiro móvel da Somália em 2017 - um sinal aos investidores de que o mercado local está a amadurecer. E também introduziu um sistema central de pagamentos em Agosto que permite a realização de pagamentos digitais entre os bancos da Somália, tornando os pagamentos mais fáceis para as pessoas em todo o país.

Transição digital

Mas o maior desafio para a indústria das telecomunicações da Somália é a transição dos telefones analógicos para os smartphones. O Banco Mundial revelava que, em 2019, 49% da população possuía um telemóvel, mas a maioria dos telefones eram telefones de características que utilizam a tecnologia USSD para aceder ao dinheiro móvel.

Isto representa um grande passo para as empresas de telecomunicações que estão interessadas em introduzir pacotes de dados como um fluxo gerador de receitas. O CEO da Hormuud diz que está actualmente a investir fortemente na fibra óptica para garantir que "todas as famílias tenham acesso à Internet".

"A voz está a morrer" e aplicações como o WhatsApp e outras estão a tomar o seu lugar, pelo que o nosso foco neste momento é a extensão e a rentabilização dos serviços de dados", diz ele.

Para já, a verdade é que a Somália, apesar de todos os problemas que a afectam, conseguiu encontrar alternativas para uma questão cada vez mais essencial no continente Aafricano.