Com que sonham os nossos e os outros animais
Gatos, ratazanas, polvos, mas também pombos e aranhas... Muitas espécies animais caem no sono paradoxal ‒ a fase durante a qual os sonhos são mais intensos nos humanos. Mas será que os animais sonham realmente?
Será que sabemos, de facto, se os animais têm as mesmas experiências de sonho que nós? Serão mais prováveis em chimpanzés, ursos ou nos nossos cães e gatos, do que em abelhas ou caranguejos?
Estas questões intrigam os cientistas há décadas, mas tentar responder-lhes cientificamente não é tarefa fácil. Antes de mais, foi necessário estudar os mecanismos cerebrais e fisiológicos subjacentes à nossa espécie. O Homo Sapiens tem uma vantagem notável para esta pesquisa: uma vez acordados, podemos recordar, falar e testemunhar o sonho! É mais difícil obter este tipo de informação de um animal, claro.
Qualquer pessoa que viva com um animal de estimação – gato ou cão – pode testemunhar comportamentos específicos durante o sono: um bigode agita-se, uma pata salta, uma orelha vira-se. “Muitas pessoas pensam que os seus animais de estimação sonham. É tentador associar estes tremores com um sonho porque é o que experimentamos connosco. Mas sem ter acesso aos seus testemunhos, é difícil dizer com certeza que estão a sonhar”, diz Gianina Ungurean, estudante de doutoramento no Instituto Max Planck de Ornitologia, em Munique, e especialista em sono animal. Um gato com capacidade de falar confirmaria que estava a caçar um rato nos seus sonhos?
Nos humanos, os sonhos mais intensos e complexos ocorrem durante a fase conhecida como “sono paradoxal” (ou REM), que foi descoberta, em 1959, pelo neurobiólogo francês Michel Jouvet. Deu-lhe esse nome em referência à actividade cerebral durante essa fase, muito rápida e semelhante à observada durante a vigília, enquanto o sujeito está a dormir e o corpo perdeu o tónus. Mais tarde, os cientistas observaram, durante o sono, movimentos oculares rápidos sob as pálpebras, daí o outro nome comum: sono REM (para rapid eye movement em inglês, movimentos rápidos dos olhos).
Michel Jouvet conduziu uma série de experiências marcantes para caracterizar o sono paradoxal nos gatos. Ao realizar uma lesão no tronco cerebral de um felino, ele foi capaz de suprimir a atonia muscular típica do sono REM, sem qualquer outro efeito. Resultado: o gato adormecido moveu-se como se estivesse a caçar, perseguindo uma presa e atacando algo à sua frente, e por vezes lambia o pelo...
“Este é provavelmente o modelo mais convincente para estudar em detalhe o que acontece durante o sono REM neste animal”, comenta Francesca Siclari, neurologista, directora-adjunta do Centro de Investigação e Pesquisa do Sono do CHUV (Centro Hospitalar Universitário Valdense). “Com este comportamento visível, como a caça imaginária de uma presa, temos acesso a um reflexo directo dos circuitos nervosos envolvidos.”
As investigações multiplicaram-se então para detectar o sono REM em muitos outros mamíferos, com base nas suas três caraterísticas: intensa actividade cerebral, movimentos oculares e atonia muscular. E as surpresas sucederam-se: o sono REM era generalizado mas de duração variável e com casos particulares.
Por exemplo, nos monotrématos – mamíferos que põem ovos –, o ornitorrinco passa quase oito horas por dia em sono REM (em comparação com cerca de duas horas em humanos), do seu total de 14 horas de sono.
Porcos-espinhos, tatus, gambás, algumas espécies de morcegos e os furões estão entre os mamíferos que têm uma maior quantidade de sono REM (entre três e oito horas por dia) do que os humanos. Os porquinhos-da-índia, babuínos, ovelhas, cavalos e girafas têm menos.
Já os cetáceos – mamíferos marinhos como os golfinhos ou as baleias - são casos especiais. O seu sono é unilateral: um hemisfério do cérebro mostra ondas rápidas características da vigília, enquanto o outro mostra ondas lentas típicas do sono profundo. Não há sinais de sono REM. É então difícil imaginar mesmo uma fraca produção de sonhos, limitada a um lado do cérebro: como lidar com a realidade à sua volta e com a visão de sonho ao mesmo tempo?
Hoje, os cientistas concordam que os pássaros também passam por duas fases diferentes do sono, REM e não REM, semelhantes às observadas nos mamíferos.
Recentemente, a investigação sobre o sono REM estendeu-se a vertebrados de sangue-frio, tais como répteis e peixes, e a não vertebrados. Num estudo publicado em 2021, na revista iScience, a investigadora Sylvia Lima de Souza Medeiros e os seus colegas brasileiros descreveram um polvo adormecido, com os braços dobrados e mudando de cor, como se estivesse a tentar camuflar-se em fundos imaginários.
“O exemplo do polvo é bastante revelador”, diz Francesca Siclari. “Isto sugere uma actividade cerebral autónoma, independente do ambiente, durante o sono REM. Tal como nos humanos.”
Em Maio passado, na publicação Pnas, foi a vez da aranha-saltadora ficar debaixo da “lupa” de Daniela Rössler, investigadora da Universidade de Constança, na Alemanha. É mais uma questão de câmaras de infravermelhos e algoritmos que escrutinam as primeiras noites de jovens aranhas penduradas nos seus fios. As suas retinas, que são visíveis através da trans- parência, agitam-se freneticamente de 17 em 17 minutos. Isto é sono REM? Sim, de acordo com os autores.
Mas se esta possibilidade, mesmo antes da de uma aranha sonhadora, deixa perplexo qualquer um, a comunidade científica é, ainda assim, cautelosa: “Não temos provas de que estes animais estejam realmente a dormir”, diz Jerome Siegel.
“Não há consenso na comunidade científica sobre a existência de sonhos em animais. Encontrar o sono REM num animal significa que ele está a sonhar? Não necessariamente. É complexo e ainda não temos a resposta para esta pergunta”, constata Francesca Siclari. “Do meu ponto de vista subjectivo, pessoal e não científico, ficaria surpreendida se fôssemos os únicos a sonhar”, admite Gianina Ungurean.
Ainda será, pois, necessário algum tempo, até sabermos como é o sonho do nosso cão ou gato.
FONTE Le Temps, Genebra