Como o Sul Quer Destronar o Dólar

A desdolarização do sistema monetário internacional poderia representar a libertação da “ditadura” do domínio monetário norte-americano, defende a aliança dos BRICS. Mas isso não é assim tão simples

O debate sobre a desdolarização ressurge mais ou menos a cada dois anos. Ultimamente, tem sido o grupo dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – a apelar à criação de uma nova moeda de reserva. Ao pôr em causa o domínio do dólar, que, de qualquer forma, está a desaparecer, esta nova moeda oferece aos mercados emergentes a esperança de se verem menos vulneráveis face às decisões políticas tomadas pelos Estados Unidos da América.

Numa altura em que o mundo está à beira de uma nova crise económica e a Rússia é alvo de sanções financeiras, o apelo à desdolarização parece ser mais popular do que nunca. No início de abril, Alexander Babakov, vice-presidente da Duma [Parlamento russo], anunciou a criação de uma nova moeda, que será discutida na cimeira dos BRICS, em Durban, África do Sul [no mês de agosto].

A implementação desta moeda insere-se na vontade de este grupo de países reformar o sistema financeiro mundial, que critica por conferir privilégios exorbitantes aos Estados Unidos da América. Resta saber se os BRICS, que não conseguiram afirmar-se enquanto alternativa que prometeram ser, são a aliança certa para destronar o dólar.

Jim O’Neill, o economista que cunhou o acrónimo BRIC em 2001, escreveu recentemente que este bloco deveria expandir-se e desafiar o domínio do dólar. Os BRICS – que agora incluem a África do Sul, uma evolução que Jim O’Neill não previu – ponderam incluir a Arábia Saudita e o Irão. “A dimensão da economia norte-americana pode estar a diminuir em relação a outras que estão a crescer, nomeadamente a chinesa e a indiana, mas o dólar mantém-se dominante em muitos domínios das finanças”, explica.

“É quase como um relógio: sempre que a Reserva Federal norte-americana [o banco central] embarca num período de aperto monetário ou de afrouxamento, as consequências para o valor do dólar são consideráveis, os efeitos são devastadores para cada dólar de dívida em dólares que outros países têm, e isto desestabiliza a política monetária destes, muito mais do que as decisões nacionais”, acrescenta.

Quando O’Neill concebeu esta aliança, que combinava o poder do Brasil, da Rússia, da Índia e da China, estas economias emergentes estavam destinadas a grandes feitos. Ele previu que todas, exceto o Brasil, cresceriam mais depressa do que a média dos G7 [países ricos] nos dez anos após 2001. Na sua opinião, o crescimento dos BRICS, e da China em particular, produziria um efeito importante na política monetária e fiscal mundial.

Publicado dois anos após a criação do euro, o texto de Jim O'Neill sugeria que chegara o momento de se reforçar politicamente esta divisa como moeda [de reserva], tal como o iene japonês, que, além do dólar, são os mais transacionados. A força da moeda norte-americana deveria então constituir um desafio importante para os países emergentes.

O domínio do dólar, nos últimos 80 anos, remonta aos Acordos de Bretton Woods [resultado da conferência com o mesmo nome, realizada em julho de 1944], que permitiu a 44 países criar um sistema internacional de taxas de câmbio. Neste sistema, que entrou em vigor em 1958 e terminou no início dos anos 70 [em Agosto de 1971, Richard Nixon pôs fim à convertibilidade do dólar em ouro, para fazer face aos colossais défices orçamentais dos Estados Unidos da América], o dólar era a única moeda convertível em ouro, estando as demais divisas indexadas ao seu valor. O dólar tinha sido eleito para ser figura central do sistema, porque o Reino Unido fora tão afetado durante a II Guerra Mundial que a libra esterlina estava fora da equação.

Após o colapso de Bretton Woods, o sistema monetário mundial transformou-se gradualmente, mas o dólar continuou a ser a moeda internacional dominante por defeito. Como já não está indexado ao ouro, o apoio de que beneficia baseia-se, em grande medida, na confiança do poder económico dos Estados Unidos da América.

Mundo a mudar, devagar

Há quem critique o domínio do dólar, por este tornar o sistema monetário internacional fundamentalmente instável e injusto, levando a taxas de câmbio voláteis, desequilíbrios macroeconómicos e crises financeiras frequentes.

No final da década de 1990, o aumento das taxas de juro nos Estados Unidos da América fez subir o dólar e levou ao colapso das moedas nacionais, bem como ao aumento das dívidas em dólares em países como o México, a Tailândia, a Indonésia, a Coreia do Sul, a Rússia e a Argentina, o que desencadeou corridas às divisas e colapsos financeiros.

A criação de um novo sistema financeiro estava no centro do projeto dos BRICS. Na sua primeira cimeira, em Ecaterimburgo, na Rússia, em 2009, os líderes comprometeram-se a reformar as instituições financeiras internacionais, para que estas refletissem melhor a evolução da economia mundial. A África do Sul aderiu à aliança, um ano mais tarde. Também em 2009, o Presidente russo Dmitry Medvedev expressou a sua ambição de criar uma moeda de reserva mundial.

Entretanto, embora o dólar tenha mantido o domínio, a sua quota nas reservas internacionais diminuiu, segundo estudos recentes. De acordo com um relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), publicado no ano passado, o sistema de reservas internacionais tem-se caraterizado por uma erosão gradual do dólar, ao longo dos últimos 20 anos.

Este declínio tem lugar em duas direções: “Um quarto para o renminbi chinês [yuan] e três quartos para as moedas de países mais pequenos, que desempenham um papel mais limitado como moedas de reserva”, afirma-se no relatório.

Os esforços da China para internacionalizar a sua moeda contribuíram para esta tendência. No final do mês passado, a China e o Brasil concordaram em abandonar o dólar e em favorecer as moedas de cada um nas suas transações comerciais. E, desde as sanções a Moscovo, que o yuan substituiu o dólar como a moeda mais transacionada na Rússia.

“O mundo está a mudar”, afirma Sanisha Packirisamy, economista do [fundo de investimento] Momentum Investments. “A contribuição dos Estados Unidos da América para o PIB mundial está a diminuir, e a quota dos mercados emergentes, sobretudo da China, na economia mundial está a aumentar”, explica. No entanto, é provável que demore algum tempo até que outra moeda ultrapasse o dólar, uma vez que este continua a dominar o mercado cambial, acrescenta.

Em 2000, a introdução do euro desencadeou semelhante debate sobre a possibilidade de este vir a substituir o dólar, salienta. O exemplo do euro demonstrou que é difícil formar uma união monetária, porque os países envolvidos têm dinâmicas diferentes em termos de emprego, inflação e fiscalidade. “No que diz respeito aos países dos BRICS, estes têm antecedentes diferentes, perspetivas de crescimento muito variadas, taxas de inflação muito desiguais, dinâmicas de mercado laboral muito diferentes e as reformas estão a decorrer a ritmos também eles muito diferentes”, esclarece Sanisha Packirisamy.

É perfeitamente possível conseguir- -se uma alternativa ao dólar, defende o investigador de economia política Patrick Bond. O que é menos claro é se os BRICS – e uma eventual aliança BRICS Plus, que incluiria a Arábia Saudita – são a melhor forma de o fazer.

Em 2014, os líderes dos BRICS assinaram um memorando em que se estabelecia um Fundo de Reserva de Emergência, ao qual os membros poderiam recorrer em caso de dificuldades financeiras. Esta alternativa ao FMI ainda não está operacional.

Patrick Bond salienta que os BRICS também não conseguiram criar uma alternativa às três principais agências de notação financeira. Também não apresentaram uma alternativa às duas instituições de Bretton Woods – o FMI e o Banco Mundial. Em vez disso, defendem uma estratégia de “assimilação financeira subimperialista” através do seu Novo Banco de Desenvolvimento. “Falam à esquerda e andam à direita”, conclui.

Texto • Sarah Smit • Mail & Guardian, Joanesburgo